Quando, na década de 1990, o professor Samuel Huntington lançou a sua tese do “choque de civilizações”, era apenas uma elaboração teórica de uma estratégia para substituir a confrontação ideológica da Guerra Fria por um conflito de longo prazo e caráter religioso, étnico e sectário. Ao longo de duas décadas e, especialmente, após os ataques de 11 de setembro de 2001, o Establishment anglo-
Agora, ações militares limitadas contra o EI não contribuirão em nada para reverter o ódio entre a população islâmica perturbada pela violência, que a leva a confundir o agressivo militarismo anglo-americano (e, eventualmente, francês) com um marco distintivo da civilização cristã ocidental.
A violência na grande região do Oriente Médio não poderá ser superada por meios militares – muito ao contrário, empregados isoladamente, estes apenas a agravam. Tais medidas tendem, apenas, a aprofundar as condições caóticas que estão ensejando uma redefinição do mapa político da região e, possivelmente, a escalar o conflito a proporções apocalípticas.
Por outro lado, a decisão de desfechar ataques aéreos contra forças do EI, sob o pretexto de romper o cerco dos terroristas islamistas aos fugitivos da minoria religiosa yazidi, demonstra a presteza com que os círculos mais belicistas de Washington aproveitam as oportunidades criadas pelos desdobramentos da sua agenda hegemônica, ainda que não tenham planejado cada aspecto dela.
O anúncio dos ataques, apressadamente feito pelo presidente Barack Obama, na noite de 7 de agosto, dispensou qualquer consulta ao Congresso, que, em tese, necessita autorizar o emprego da força militar – como se viu em agosto de 2013, quando Obama recuou da intenção de ordenar um ataque à Síria sem o aval do Capitólio.
Não obstante, na véspera, em uma demonstração do modus operandi das forças relevantes na capital estadunidense, o Centro de Estudos Estratégicos e Internacionais (CSIS), um dos mais prestigiosos think-tanks do Es
No ainda mais influente Conselho de Relações Exteriores (CFR) de Nova York, o presidente Richard Haass não apenas apoia os ataques, como diz que eles deveriam prosseguir: “Os EUA deveriam efetuar ataques sustentados contra o ISIL, tanto no Iraque como na Síria. A fronteira é irrelevante (sic); o que é essencial é que o ISIL seja retardado e enfraquecido (CFR, 12/08/2014).”
A seletividade da intervenção estadunidense foi criticada pelo patriarca caldeu de Babilônia, Louis Raphael I Sako, que considerou “desconcertante” a decisão de defender apenas o território curdo do ataque do EI, deixando de lado Mosul e outras áreas conquistadas pelo grupo. Da mesma forma, ele lamentou as disputas políticas no governo iraquiano: “Enquanto o país está sob ataque, os políticos continuam lutando para conquistar o poder (Zenit.org, 12/08/2014).”
O EI é mais um rebento bastardo da agenda hegemônica de Washington e Londres, cujo objetivo mais amplo parece ser o de manter toda a grande região do Oriente Médio em um estado de convulsões permanentes, no contexto da estratégia do “choque de civilizações”.
Na criação do EI, o eixo anglo-americano contou com a colaboração direta dos seus aliados na região, como a Turquia, Arábia Saudita e Catar, mas, agora, até mesmo estes últimos começam a perceber que ajudaram a parir um monstro incontrolável. Por isso, em algum momento, uma dose de realismo terá que se impor para um esforço voltado para a sua neutralização, empenho que exigirá, entre outros itens, o abandono de qualquer pretensão hegemônica externa à região e um entendimento político inusitado entre governos e organizações com agendas diversas e, com frequência, conflitantes. Para tanto, será imprescindível a garantia da estabilidade dos governos da Síria e do Irã, cujas forças militares são as únicas em condições de oferecer uma oposição armada efetiva às hordas do EI, em cooperação com o grupo libanês Hisbolá e a milícia curda Peshmerga. E o governo da Turquia teria que prover um requisito básico, fechando as fronteiras do país à circulação de militantes dos grupos opositores do regime de Damasco.
Ou seja, a saída não virá com a persistência da visão do mundo “excepcionalista” favorecida pelas elites hegemônicas anglo-americanas, baseada num fundamentalismo religioso calvinista de predeterminação divina – cujos vínculos com o cristianismo são apenas nominais -, e que somente pode ser neutralizada com um autêntico diálogo de civilizações baseado na concórdia e no perdão – princípio consolidado no histórico Tratado de Westfalia de 1648, que encerrou a sangrenta Guerra dos 30 Anos.
Hoje, tal cenário se assemelha a um wishful thinking, mas é possível que, nas próximas semanas e meses, as atrocidades cometidas pelos fanáticos do EI se acumulem ao ponto de sensibilizar as opiniões públicas e os governos das capitais relevantes, para um entendimento que, eventualmente, o viabilize.